quarta-feira, novembro 08, 2006

ALUCINAÇÃO


Ele tinha, delicadamente, declinado um convite para almoçar. "Gostava de te levar a um restaurante onde a comida é, apenas, um pretexto. A cor, a textura e o paladar são apenas a introdução para um tempo bem passado. Fica na marginal. E quando os teus olhos se fartarem de ver ao espelho nos meus, sempre poderás reflectir a tua timidez nas águas tranquilas do rio e, quem sabe, nele descobrir peixes verdes." - concluía ela o convite, desta forma poética.
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Agora, tentando redimir-me da nega matutina e do temor que de mim se apoderou pela forma inesperada e simultaneamente desejada do seu apelo, espero-a para jantar. No loft ribeirinho que há meia dúzia de meses comprei, decorado de forma minimalista, de cores claras e confortável, coloco na aparelhagem Stanley Clarck, num CD fantástico gravado ao vivo "At the Greek". O jantar, exclusivamente feito por mim, está pronto...umas ostras cozidas "ao" molho de limão, irão abrir as hostilidades, aproveitando o Veuve Clicquot aberto anteriormente para espairecer o espírito. Depois umas perdizes estufadas com um puré cremoso de batata, acompanhado de uma couve-flor gratinada. Para apurar os sentidos e libertar as amarras deste navio que é o desejo, nada melhor do que um vinho tinto, quente, do douro. No caso um Quinta Vale D. Maria de 2003. Para sobremesa, um "fondant" de chocolate coberto por umas natas semi-frias...todo este ritual celebrado com uma música eléctrica mas, simultaneamente, inebriante de Nitin Sawhney.
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Quando a campainha tocou estava eu detido em pensamentos semi-eróticos ou, pelo menos, sensuais, pensando no bom que seria apreciar um café estupidamente forte, bebido numa caneca grosseira, seguido de um Cognac de boa colheita, na varanda da casa - do loft, digo - enrolado num cobertor macio, aconchegado num poof...com o mar à minha frente, iluminado pela lua e pelas estrelas. Melhor, por uma em especial. Por ela. Aqui a música seria outra, a banda sonora teria que ser apelativa, teria de ser provocadora, teria de tocar a rebate o alerta dos sentidos...ao fim e ao cabo que nos desse a sensação de liberdade, a possibilidade de voar nas assas do deslumbramento do som rumo à realização do "encontro". O rock psicadélico dos Pink Floyd?..podia ser mas...não, tinha que ser algo mais forte...algo "pulp fictioniano"...sim, iriam rodar e rodar e rodar as várias versões do "Girl, You'll be a woman soon"...e pedir-lhe que me entregasse a alma e o fizesse entregando-se-me...sem condições, nem tempo. Toda. Só assim a queria. Completa.
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Abro a porta com um sorriso confiante e másculo, quando dou de caras com um homem impecavelmente vestido, o qual me pergunta o nome e a quem respondo, surpreendido, maquinalmente. "Esta encomenda é para si." - disse ele, entregando-me um ramo de Margaridas brancas, como o branco mais puro que alguma vez me foi dado ver. "A menina deve gostar muito do Senhor", continuou para concluir, "quase perdeu o avião por sua causa". Avião?..Menina?..Seria ela?..Serias tu?..Fechei a porta de uma forma, um tanto ou quanto, atabalhoada e, de garrafa de Champagne na mão - pronta a entrar de imediato na goela - abro o envelope e retiro o bilhete que dizia, tão assustadoramente, o seguinte: "Meu amor - acho que nunca te chamei assim - aceita estas flores como um pedaço de mim; plantei-as, trateia-as e colhi-as eu própria no meu jardim. Retira-lhes as pétalas e deita-as nas piscina que aí tens e de onde consegues ver o céu estrelado no horizonte da foz, onde o rio se funde com o mar. Depois, abraça a água e deixa que elas envolvam o teu corpo nu. Por fim olha o céu. Hás-de vê-lo todo, tão grande, enorme. Na imensidão do desejo e sensações que de ti se apoderarem hás-de descobrir, entre todas as estrelas, uma que brilhará mais do que todas as outras. Serei eu. Serei tua. A tua estrela." As lágrimas corriam-me pela cara abaixo, mas tinha de arranjar forças para terminar aquela leitura, quase, necrológica. Os seu olhos verdes pareciam-me agora tão distantes, as covinhas quando sorria e...aquela figura de mulher que me comprometi a satisfazer...compromisso meu...comigo...Tão longe. "...Não estou a fugir, nem tão pouco a dizer adeus. Depois destes dois desencontros havemos de nos Reencontrar...algures. Só por uma razão: porque tu me queres e eu tremo de vontade em te ter. Mas não agora. Não. Quando o caminho não tiver pedras e o céu expulsar todas nuvens. Sei que hoje perdi um momento, mas apurei o amor, o amor que sinto por ti. E, como dizia o Drummond de Andrade, não há falta na ausência. Não te esqueças...a estrela que mais brilhar...sou eu, que em ti estarei quando abraçares a água e beijares as pétalas. Um beijo grande, para sempre, muito...meu amor".
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Arrasado, aliviado, feliz. Que turbilhão de sentimentos e sensações. Tinha-a conquistado e o desencontro era apenas espacial. Tinhamos percebido o essencial, tinhamo-nos entregue à transcendência. Pertenciamo-nos irremediavelmente. A consumação deste amor, pleno de desejo, dar-se-á algures, no tempo e no espaço, provavelmente num dia de chuva em que ambos involuntariamente nos econtremos num passeio solitário à beira-mar, à beira de um qualquer mar, à beira de um qualquer oceano. E nessa altura, a estrela do céu há-de ter uma forma bem caprichosa...há-de ter a forma de uma ramo de margaridas brancas, cujas pétalas substituirão as gotas da chuva...no preciso momento em que desistirmos de ser dois.
"Terra"

3 comentários:

Anónimo disse...

"... a pouco e pouco, todos se foram retirando para os respectivos quarto. Apenas ficou Pedro ... Sensatamente, despediram-se justificando um ao outro a retirada com a dureza do dia seguinte ... Maria foi para o seu quarto com pena, com muita pena, com muito mais pena do que aquilo que seria normal, de que Pedro não fosse um dos que ficaria ... Maria ... Acalentava com carinho a possibilidade impossível de ser Pedro um dos que ficaria ... Dormiu com alguma inquietação, ao som de fundo do coaxar das rãs nas salinas ali próximas ... As almas de Maria e Pedro já estavam casadas e amavam-se para toda a eternidade. Já eram uma só. Faltava apenas às suas consciências aceitarem essa fatalidade. Maria conhecia Pedro há dois dias, mas tinha a sensação de que o conhecia de toda a vida e, se calhar, até de outras vidas. Por isso, enervava-a um pouco a sensação que tinha de que Pedro não a compreendia do mesmo modo. Fazia-a sorrir, no entanto, a estranha certeza de que estas conversas com Pedro eram um processo de reconhecimento (não de conhecimento) de almas que se conheciam, no sentido mais puro e intenso do termo, desde a aurora dos tempos ..."


Pedro Krupenski, Túmulos Caiados
(Mercado das Letras, 2006)

MBSilva disse...

Bem, que surpresa encontrar este texto aqui!!!!

Hummm....

Anónimo disse...

Qual a surpresa?