sexta-feira, março 09, 2007

Guarda chuva

Não uso. A água que cai, limpa, clarifica, purifica. Aquele cheiro a terra depois de umas violentas bátegas de Outono, pacifica qualquer alma mais perturbada.
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Sentado, encostava-me a um choupo. Perna estendida e outra dobrada com um chapéu à cowboy posto no joelho. Mãos atrás da nuca. Jeans, camisa branca aberta e um colete castanho de camurça. Memórias de uma juventude, memórias de um tempo vivido num interior, cada vez mais inexistente, de Portugal. Memórias de uns fins de Setembro cor de fogo.
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Cheguei a lá levar algumas namoradas. Os corpos húmidos das chuvas, as transparências do algodão e a proximidade dos corpos...quentes. Já na altura achava o "quadro" muito sensual. Muito místico mas, ao mesmo tempo, carnal também. Era bom.
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A indiferença, a distância imposta, o desejo reprimido...tudo guarda-chuvas que, desejavelmente, nos protegem mas que, potencialmente, nos impedem de chegar a uma felicidade livre. Não gosto. De guarda-chuvas, quero eu dizer. Quaisquer que eles sejam.
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Há anos que não a via. Cruzei-me com ela no fim-de-semana passado, na Fnac de um desses Centros Comerciais. Falámos, rimo-nos e, quando dei por ela tinha passado uma hora, havia aceite um convite para jantar - "eu cozinho", disse ela - e um mundo de memórias nas mãos. Que era Psiquiatra; que não, não tinha filhos e homens era quando a centelha se transformasse em labaredas ou do vulcão brotasse a lava. Livre, portanto. Na verdadeira acepção da palavra.
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Deitado num divã da sala, depois de um jantar bem comido e melhor bebido, rendemo-nos à conversa. Que quisemos sem rumo, nem destino. O copo de Whiskey poisado no chão e navegado por dois icebergs era acompanhado por um Vodka laranja, da mesma forma que, a meus pés, te sentavas e acompanhavas a voz desta carcaça. Nunca havia reparado na beleza do cinzento dos teus olhos. Já a tua boca carnuda, a firmeza dos teus peitos e essas pernas compridas que terminam de forma convincente e perigosamente provocante no princípio de um tronco delgado eram impossíveis de esquecer. As conversas solitárias que tive à custa do teu corpo. Em bom rigor, à custa do teu corpo e do teu espírito.
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Sempre tiveste uma atitude terna comigo, de alguma complacência diria. Os meus excessos, achava-los queridos. Percebias-me sem fazeres qualquer esforço. Possivelmente já nesses exercícios despontava a tua queda para a psiquiatria. Não sei. Não sei sequer se soubeste da minha loucura por ti.
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Agora que a tua boca distava, apenas, uns milimetros da minha, toda a "nossa" história passava num flash.
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Quisemo-nos e...tivemo-nos. Eu, um pouco desajeitado, fruto do imprevisto da coisa. Tu de uma sensualidade serena, mas quente. Disseste-me: "Sempre te quis provar, mas estavas demasiado protegido. Com um qualquer programa anti-virus. Tinhas os guarda-chuvas todos abertos e eu não conseguia chegar perto." E eu que nunca quis outra coisa. Foi ontem e estas palavras ainda me fazem as meninges latejar.
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Despedi-me de ti, tendo ainda tido tempo para ouvir da tua boca: "Terás sempre o teu espaço, aqui. Promete-me que voltas". Eu, encostado à porta para não me desiquilibrar - descamisado e gravata ao peito - nada prometi. Não podia. Em abono da verdade não posso. O meu outro mundo...
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Consegui balbuciar ainda, nos limites das minhas capacidades, umas palavras e fiz-te uma pergunta: "Para ti o que é o mais importante?". Respondeste-me com uma simplicidade desconcertante: "É o que dói, meu amor. O mais importante é o que dói".
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"Hmm", reagi eu.
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"São os afectos", concluiste.
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"Terra"

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